quarta-feira, 25 de março de 2020

Em que “O amor nos tempos do cólera” pode nos ajudar a entender um pouco mais o momento do coronavírus?

Um surto, uma epidemia, qualquer doença, quando acontece, faz com que a gente sinta que a terra se abriu, que caímos num abismo fora de nosso controle. Parece um teste para detectar nosso poder de suportar um mal que nos ataca por dentro do corpo, da cidade, do país ou, no caso do Corona, do mundo. Os mais fracos sucumbem por falta de recursos físicos, materiais ou psicológicos. Por isso, toda doença ataca também e sobretudo o nosso moral.
O cólera, no romance de Garcia Márquez parece constar apenas como pano-de-fundo. Em mais de um momento, no entanto, o narrador lembra quanto os sintomas do amor assemelham-se aos da doença, sendo o amor, e não a doença, o protagonista da história. O amor fora de controle seria, pois, doentio. De fato, fica-se boquiaberto com a alienação de Florentino diante de tanta desgraça ao seu redor. Nada é mais importante que Fermina. Isso se nota, principalmente, quando o casal por fim se reúne. Pouco lhes incomoda que o barco em que viajam passe por cadáveres flutuantes. É também nessa viagem que Florentino percebe que toda, mas toda, a floresta em torno do rio Madalena foi destruída por conta de sua Companhia de Navegação a vapor. Para ele, só importava que a empresa progredisse, tornando-o alguém importante na cidade e, no seu entender, digno aos olhos de Fermina.
Mas o mundo, tal como evoluiu em sua desumanidade, não confronta o amor? O mundo não adoeceu justamente por falta de amor? O amor de Florentino leva ao absurdo a premissa romântica do amor eterno. Seria a sua uma experiência de amor fraturado? Florentino fraturou sim o amor, dividiu-o entre aquele que vai por cima da cintura e o que vai por baixo. O amor mundano e o telúrico e sagrado; aquele vivido com base na compaixão (em que ele é o objeto da compaixão) e aquele que – forte e misterioso – o faz devorar flores e ativa seus sentidos, sua sensibilidade, sua veia órfica. 
Não é que ele não sofra pelo amor mundano. É autêntica a sua dor pela morte da amante Paloma, assassinada pelo marido, ao descobrir no ventre da mulher, a inscrição por Florentino de que aquela “pombinha” lhe pertence; e pela adolescente América, que se suicida sem saber como estar no mundo após o seu abandono. Mas de fato ele não consegue se ver responsável por nada disso. Ele apenas se deixou levar pelas águas. Não se conteve. A doença estará na anulação da consciência então? O amor incita, irrompe como um trovão, e o ser flechado nada poderia de fato contra esse fulgor? O amor aprisiona ou liberta? Adoece ou cura? Talvez seja mais realista pensar que quem ama oscila, relampejando no claro-escuro. Aprisiona-se e liberta-se. Adoece e se cura. Como dizem poetas como Florentino Ariza, o amor faz o universo se mover. Igualmente, o amor faz a gente se mover pelo mundo, buscando aprender a ser humano, de modo ora consciente, ora febril.
Todas as mulheres de Florentino sustentam o seu viver, mas só uma lhe fez nascer para o mundo. Fermina o fixou em sua cidade, lhe deu sustentação, desejo e força para permanecer com vigor até a velhice. As outras o fizeram pensar e aprender enquanto vivia. Talvez no final ele tenha percebido isso, quando se tranca no banheiro e chora e chora pela morte da jovem América.
O remédio para o mal do amor, portanto, parece ser não outro do que se deixar levar pelo amor. Ser amoroso sempre, sem o inútil gesto do controle. A grandeza de Florentino está em ser pequeno diante do amor. Frente a essa doença nada há a fazer, a não ser seguir em linha reta, sem outro objetivo do que o de viver por amor. A natureza proverá a cura, ou seja, a consciência ou a sabedoria, do momento em que o amor se tornar evidente em cada gesto. Parece que sim, ao final, Florentino percebe o quanto pode ser destruidor. Mas não sucumbe diante da consciência. Hasteia a bandeira amarela e negra da doença e coloca-se em quarentena com coragem e humildade. Pode-se dizer que Florentino e Fermina, os dois por fim unidos num único fluir, assemelham-se ao pai de “A terceira margem do rio”. Não podem mais estar em uma margem que se oponha à outra. Sabem que a morte está bem próxima e os circunda mas sabem também que eles mal acabaram de nascer. A diferença com o solitário canoeiro na história de Guimarães Rosa é que o casal não navega sozinho. (Pensando bem, o pai sabe também que não está só, e que depende de sua família, ainda que à distância.) Para Florentino e Fermina se moverem, a vida lhes ensinou que precisam dos outros: um outro marido, muitas outras amantes, uma tripulação. Mas tudo está ainda informe e obscuro. Eles navegam e ao mesmo tempo, pacientemente, esperam. Eles participam do mundo, reconhecem a sua doença e a necessidade de que lhes ajudem a continuar tocando o barco.
De volta então à pergunta inicial, conclui-se que a vida em um tempo de coronavírus precisa ser assim: vida na terceira margem, sozinhos e juntos, sob a bandeira do vírus, mesmo não estando literalmente contaminados e, por amor, ir seguindo, mesmo sob tantas limitações físicas. Diante do caos, é preciso navegar. O sulco provocado pelo pesado e artificioso navio separa as águas. Mas quer queiramos ou não as águas voltarão a se unir. Essa é a natureza do trovejante e abismal chão do amor. 
________________
Para escrever este texto, joguei o IChing, lançando ao Oráculo a questão titular. Os hexagramas indicados, depois do jogo das moedas, foram o de número 2 – “Terra (o Receptivo)”, com mutação para o de número 4 – “Dificuldade inicial” (composto pelos trigramas Água (o Abismal) abaixo e Trovão (o Incitar) acima.